quarta-feira, 9 de junho de 2010

Viagem em família

Viagem em família




Chamo-me Carolina e fui uma rapariga normal. Tinha amigos normais, sonhos normais, uma vida normal. Tinha boas notas, ia a todas as festas, era muito popular, adorada pelos meus amigos, invejada pelos outros. A minha família adorava-me. Tinha uns pais fantásticos, tios e primos super queridos, uma madrinha compreensiva, avós que me enchiam de dinheiro. Mas isto não era nada sem ele. Luís, o meu irmão mais novo. O meu irmão Luís era 5 anos mais novo que eu e era o melhor em tudo: tinha as melhores notas do seu ano, era o melhor jogador da equipa de futebol de lá da escola, não havia só uma rapariga que não gostasse dele, um único rapaz que não quisesse ser como ele. E eu adorava-o como irmão e amigo. É por isto que eu me recuso a esquece-lo e a deixa-lo ir, como me aconselham.
Foi no fim do Verão à dois anos que tudo aconteceu e eu lembro-me como se tivesse sido ontem! Eu tinha dezoito anos, acabadinhos de fazer, e o meu irmão treze. Tinha-me pedido, quase suplicado, que queria ter umas férias em família num lago a que tínhamos ido uma vez quando ainda éramos muito pequeninos. Eu gostei logo da ideia, até porque adorava aquele lago, e fui falar com os meus pais, que assentiram logo! Trabalhei muito nesse verão para juntar o dinheiro necessário para a viagem e no fim de Agosto partimos numa viagem que, sem dúvida, seria a viagem das nossas vidas.
Compramos uma caravana e arrancamos numa madrugada muito contentes! Tive de carregar o meu irmão até a carrinha porque ele tinha adormecido a vestir a camisola e enfiado as calças do avesso, o que nos fez rir muito de manhã. Chegamos ao lago pela hora do meio dia e ficamos deslumbrados pela beleza daquela zona. Uma floresta linda, enorme, com árvores altas e robustas, cobertas por folhas, frutos e pequenos animais que decidiam construir lá no cimo as suas casas, para armazenar comida para o inverno. No centro dessa floresta havia uma enorme clareira e nessa clareira um lago de um azul estonteante. Era uma paisagem linda, sim senhora. Agora sei que até as mais lindas paisagens nos podem trazer as piores recordações.
Passamos a tarde toda a desfazer as malas e a passear, para conhecer o lugar. Ao fim da tarde o Luís e eu fomos tomar um banho no lago e tirar umas fotos, enquanto os meus pais preparavam o jantar. Comemos espetadas, todos à volta da lareira e contámos histórias de terror uns aos outros. À meia-noite o Luís foi apagar a lareira e fomos dormir.
Fiquei quase toda a noite acordada a pensar no que íamos fazer amanhã. Podíamos ir outra vez tomar banho no lago! Ou passear por esta zona, conhece-la melhor! Ou plantar árvores! Jogar cartas! Fazer uma jangada!! Tantas as hipóteses!! De certeza que teríamos tempo para tudo isto e muito mais! Afinal de conta ficaríamos duas semanas cá. Foi quando já se tinha levantado o sol que adormeci finalmente, excitada com as aventuras de manhã!
Quando acordei já se tinha deitado o sol e eu estranhei que ninguém me tivesse acordado. Levantei-me de um salto, enfiei um vestido e fui ver aos quartos, mas nada, não havia sinal nem dos meus pais nem do meu irmão. Teriam saído sem mim?
Saí da caravana para ir buscar um pouco de lenha para aquecer o leite e foi quando ouvi o seu grito. Um grito desesperado, do meu irmão tenho a certeza! Corri na direcção dos gritos, a chamar por ele e pelos meus pais, mas então deixei de ouvir som. Não ouvia nada, nem os gritos do meu irmão, nem os meus pais, nem o som da água do lago, nem os pássaros, nem o ruído das folhas a agitarem-se com o vento. Pus a mão atrás da cabeça, toquei e olhei para a mão; estava coberta de sangue. Depois senti uma dor aguda pelo meu corpo todo e comecei a ficar tonta e a ver tudo preto.
Quando acordei estava deitada numa cama, num quarto iluminado. Levantei-me e corri no sentido da porta e comecei a gritar por Luís. Mas espera, quem é o Luís?? Não conhecia nenhum Luís. Comecei a tentar me recordar de quem eu era mas uma dor latejante afogou os meus pensamentos. Eu não me lembrava de quem eu era!!
- Estás no hospital, minha querida... - disse uma senhora com um ar simpático, mas com as lágrimas a virem aos seus olhos redondos, de um azul muito bonito.
- Porquê? O que se passou? - instiguei eu.
- Levaste uma forte pancada na cabeça e perdeste a tua memória. Mas tem calma, com o tempo voltarás a lembrar-te... Agora temos aqui um agente da polícia que quer falar contigo. Ouve, isto vai ser muito difícil para ti, - as lágrimas começaram a ganhar intensidade nos olhos dela - portanto eu vou ficar aqui o tempo todo, ao pé de ti, e se não quiseres ouvir mais paramos logo sim querida?
- Sim...
- Bom dia menina Carolina Souberra, eu sou o agente Carlos Andrade, do departamento de investigação criminal de homicídios de Rio Lento e estou aqui para a informar de uma tragédia que aconteceu ontem com a sua família... e fazer umas perguntas, se possível.
- Homi...homicídio...? A minha família...?
- Sim menina. Do que se lembra dos dias anteriores?
- Não me lembro de nada! Espere! Lembro-me de levar uma pancada na parte de trás da cabeça! Mas não vi o que me atingiu! O que aconteceu à minha família??
- Ontem recebemos um comunicado de uns pescadores que costumam pescar no lago, descobriram-na deitada no chão, perto da margem, a sangrar bastante. Então iniciamos buscas por aquela zona. E o que descobrimos deixou-nos, sinceramente, perplexos...
- O que descobriram? Por favor, digam-me já!
- Bem... Nós estávamos a fazer a busca por aquela zona...e um colega meu chamou-me... e descobrimos um corpo...o do teu irmão...ainda não encontramos os teus pais, mas cremos que lhes aconteceu o mesmo...lamento...
De repente senti como se me estivessem a arrancar o coração, senti o ar a escapulir-se-me por todo o corpo, como se me estivessem a sugar a vida. Caí de joelhos no chão, amarrei-me com toda a força ao peito e gritei o mais alto que consegui, até não me restarem mais forças e chorei até não me sobrarem mais lágrimas. O meu irmão...não podia estar a acontecer, não.
Quando me acalmei perguntei-lhe:
- Como descobriram o corpo? Têm a certeza que é ele?? Quero ver fotos, quero ter a certeza que é ele!
- Calma menina, nós vamos lhe mostrar as fotos, mas tudo a seu tempo. Primeiro temos de lhe contar o que vimos e só depois de estares preparada é que te podemos mostrar as fotos. Nós descobrimos o corpo do teu irmão, pendurado numa árvore pintada de vermelho. Mais tarde descobrimos que a árvore tinha sido pintada unicamente com sangue do teu irmão. E, bem, isto foi o que nos chocou mais...O rapaz estava divido em cinco... foram separados a cabeça e os membros do tronco e foram apregoados à árvore. Só alguém louco poderia fazer uma coisa dessas...mas também foi esperto o suficiente para não deixar pistas...estamos a tentar tudo para descobrir o que aconteceu ao seu irmão! Os seus pais continuam desaparecidos, mas estamos a fazer os possíveis para os encontrar...a tempo de evitar o pior.
- Ai não! Como pode isto acontecer?? O meu irmão... os meus pais...não!! Tem a certeza que é ele?? Por favor, diga-me que não!!
O homem fez um trejeito de pena e mostrou-me um conjunto de fotos. E de repente tudo veio à memória. Sim, aquele era Luís, o meu irmão mais novo e eu não queria acreditar no que estava a ver.
Passaram-se dois anos desde o sucedido. O caso foi arquivado, os meus pais nunca foram encontrados e o culpado continuava a monte, por julgar.
Desisti da escola e de viver. Comecei a trabalhar à pouco tempo num café, mas já sei que vou ser despedida em breve. Vivo com a obsessão de tentar encontrar o assassino. Enceno todas as noites o momento em que me deparo frente a frente com ele. Tenho mais de mil maneiras de o torturar e matar, cada uma mais sinistra que a outra. Desejo poder realizar cada uma delas, a cada segundo da minha vida. Só assim darei paz aos meus pais e ao meu irmãozinho.
Nessa noite...
Uma carta? hum, já não recebo uma carta à muito tempo...(abre a carta e vê fotos do irmão, pendurado naquela árvore)...
O que é isto?! Porquê estas fotos agora?! Oh meu Deus, o meu pobre irmão...
Foi como se lhe tivessem aberto feridas do passado, feridas mal saradas mas que eram suportáveis.
Diz aqui para voltar ao lago...Pois eu vou voltar sim! Mas vou prevenida!!
No dia seguinte comprou uma arma e no dia a seguir fez as malas para voltar ao lago.
Quando chegou olhou em seu redor. Continuara tudo na mesma, tudo calmo, impávido e sereno. Apetecia-lhe chorar...Procurou o lugar em que o irmão foi morto. Sabia que ia ser chocante, mas o que viu a seguir chocou-a ainda mais. A sua família, toda morta do mesmo modo que o seu irmão. Todos dispostos em fila, apregoados a árvores, cortados em pedaços.
- Não! A minha família!! Porquê a mim?! Matem-me já! Deixem-se de brincadeiras e matem-me como fizeram a todos os outros seus monstros!
De repente ouviu um barulho vindo de uns arbustos...
Foi a sua mãe que apareceu, com um sorriso maléfico nos lábios.
- Foste sempre tu! Mataste o teu próprio filho e a tua família sua bruxa!! Vou-te matar a ti agora!!
Carolina apontou a pistola à mãe, estupefacta com o desenrolar da história. Nem por uma só vez pensou na sua mãe como uma assassina.
- Fiz o que tive de fazer. Não temos explicação, só queríamos aniquilar toda a família, porque achávamos que estavam a mais.
- Temos...? Queríamos...? Achávamos...?
De repente levou uma pancada na parte de trás da cabeça. Olhou para trás e viu o seu pai. Depois caiu por terra.

Dias depois o agente da polícia chegou ao local, de onde lhe foi comunicado, outra vez pela comunidade de pescadores, o que viram.
O agente viu uma família toda morta, incluindo Carolina, apregoados a árvores pintadas com o seu sangue, cortados aos pedaços. E nem sinal do autor do crime. O caso foi arquivado de novo anos mais tarde, por falta de provas.
Foi sem dúvida uma viagem em família.

Maria Vieira


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